Resenha de livro raro: Uma Região Tropical, de Raimundo Lopes

16/05/2013 08:55

 Paul Avelino
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LOPES, Raimundo. Uma região tropical. Rio de Janeiro: Cia. Editora Fon-fon e Seleta, 1970. 197p. Coleção São Luís, volume 2.

As viagens de turismo talvez sejam a maior ilusão desses tempos de ilusões. Tem os problemas de sempre, como os prefeitos achando que a gente tem o dever de visitar suas cidades embora eles não preservem a história nem recolham o lixo. Tem os guias de turismo, uma categoria de gente sorridente que se convenceu de que seus clientes são uns imbecis e os trata como tal.


Mas o principal problema não são esses. É que – a terra existe, o povo existe. São perceptíveis a nosso olho e demais sentidos. Quando viajamos estamos lá: nosso olho e o mundo, cara a cara. Mas uma das desgraças de ser humano é que o mundo nunca se nos apresenta integral. O mundo em estado de nudez não é apreendido por nós. Sempre precisamos de uma mediação. Um rio é só um rio – até que sabemos que ele era usado como refúgio de piratas, que uma organização está realizando eventos para arrecadar dinheiro para preservá-lo e que houve um quilombo de escravos nas suas margens cujos descendentes ainda estão por lá – o rio ganha uma outra dimensão. Uma casa velha é só uma casa velha – até que sabemos que foi feita com óleo de baleia pois não havia cimento na época. Quando ganhamos conhecimento o próprio mundo muda – daí a proposição do filósofo Ludwig Wittgenstein os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. Se viajamos sem conhecimento o mundo muda muito pouco – aquele lugar visitado não entra em nosso mundo, apenas o roça – como uma sombra que lembramos vagamente.

Quando visitei o Maranhão em dezembro de 2001 o estado estava em voga – a governadora era a candidata conservadora de plantão. Eu ia para os Lençóis Maranhenses. Mas ao desembarcar do avião e antes de pegar o ônibus corri a um sebo na rua Sete de Setembro em São Luís, perto do Teatro Artur Azevedo. E foi aí que pela primeira vez ouvi falar em Raimundo Lopes da Cunha.

Raimundo Lopes foi uma dessas verdadeiras mentes brilhantes, só que sem necessidade de mercadologias holiudianas. Escreveu seu primeiro livro, “O Torrão Maranhense”, considerado pelos especialistas o primeiro bom livro de geografia sobre a região. Só que o escreveu quando a maioria das pessoas está pensando em outras coisas que em teorias geográficas – ele o escreveu aos dezesseis anos. E o publicou no ano seguinte, 1916 (nascera em 1899). Pouco depois entrou para a Academia Maranhense de Letras, e uma de seus pontos altos, segundo quem leu (eu não tive acesso a tal texto) foi o elogio a Maranhão Sobrinho. Esse era um poeta então recentemente falecido e com uma poética moderna. Anos depois o concretista Augusto de Campos o homenageou com o ensaio Stefânio Maranhão Mallarmé Sobrinho.

Nos anos vinte Raimundo Lopes fez escavações pelo interior do estado, e disso resultaram descobertas responsáveis por duas das três menções ao seu nome que existem na Internet. Uma é a estearia do lago Cajari, no município de Penalva, no vale do grande rio Pindaré. Estearias ou cacarias eram os nomes que o povo da região dava ao que o quase menino (tinha pouco mais de vinte) professor de geografia descobriu que eram na verdade vestígios de uma aldeia de palafitas de pessoas que habitavam aquele mesmo lugar, sobre a superfície daquele mesmo lago, cerca de dois mil antes de Cristo. Foi uma descoberta importante. Eram as primeiras habitações lacustres encontradas em todo o mundo fora da Suíça. As primeiras no continente americano. Pesquisadores do Museu Nacional e do exterior louvaram esse feito. Depois ele realizou outra descoberta, o sítio cadastrado como MA-SL-4, também chamado de Sambaqui da Maiobinha. Sambaquis são pilhas de conchas, peixes e outros vestígios de povos que viviam á beira-mar. Esse é bem próximo da capital, na estrada entre São Luís e a cidade-dormitório de São José de Ribamar, sítio que o próprio IPHAN classificou como relevância Alta.

Na década de trinta começaram a sair no Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio os capítulos sucessivos do livro que comprei no sebo, Uma Região Tropical. Tempos depois, no final dos sessenta, a SUDEMA – Superintendência do Desenvolvimento do Maranhão – escolheu alguns livros clássicos sobre o estado. E reeditou este livro, que é uma ampliação d´”O Torrão Maranhense” ou, como diz o anônimo autor da notas de introdução, “o alargamento, o aprimoramento ou o fortalecimento das idéias e das análises do seu primeiro livro”.

Foi esse o livro que me serviu de companhia enquanto eu adentrava o estado em uma rodovia nova com paradas de ônibus imundas. As rodovias novas se explicavam: a candidata conservadora estava querendo mostrar que sabia fazer estradas, e que suas ideias provavelmente não eram diferentes das de Washington Luís, o tal que dizia que governar é abrir estradas. As paradas imundas e a sujeira de plástico e lixo em geral perto das cidades também eram tristemente lógicas: estava rumando para uma região que sempre foi paupérrima dentro de um estado que já foi rico e hoje é pobre.

Foi com Raimundo Lopes que eu descobri que o Maranhão é historicamente como quatro dedos espalmados, sendo cada dedo um rio. Da esquerda para a direita, o Pindaré, o Grajaú, que é afluente do próximo, o Mearim, e o Itapecuru. Todos convergindo para a Baía de São Marcos, onde está São Luís. Foi nos vales desses rios, caudalosos rios, que se instalou mais uma onda de civilização do açúcar em meados do século XIX. Os barcos dos latifundiários subiram esses rios queimando matas, cortando árvores e fazendo um mar de cana. Posteriormente o algodão, quando a guerra civil americana empurrou para cima os preços do produto. O mais importante era o Itapecuru, um rio polvilhado de cidades na sua margem, com navegação a vapor e depois ferrovias. Sua principal cidade, Caxias, deu origem ao título que um personagem importante do Império recebeu. Em 1872 quando do primeiro censo São Luís tinha um produto bruto maior que São Paulo capital. Era a época dos casarões de quatro andares.

A região para a qual eu ia não tinha nada disso. Pelo contrário, como dizem os prospectos para turistas, os Lençóis Maranhenses “são o único deserto brasileiro”. São uma sucessão de dunas salpicadas de lagos em forma de meia-lua que se enchem durante a estação chuvosa. Essa morraria (é assim que o povo a chama) se estende de forma absolutamente uniforme no sentido do sudoeste, o sentido do vento. A cidade mais próxima, Barreirinhas, era uma espécie de oásis porque é contada por um rio, o Preguiças. Segundo a “Enciclopédia dos municípios brasileiros” de 1959 era um refúgio dos negros fugidos. A cidade sofreu muito com a Balaiada, na década de 1830. Seu rebanho de gado foi todo dizimado, a enciclopédia não diz se por vingança ou por que os exércitos que passavam se alimentavam dos bois. Curiosamente a falta de terreno para a agricultura que fez com a região ficasse abandonada hoje é sua grande atração – os turistas vêm ver o areal. E com o declínio dos preços do algodão e pouco depois com a abolição da escravatura – os escravos eram os que trabalhavam para valer – o Maranhão teve sua indústria e prosperidade desmanteladas.

Raimundo Lopes não viveu muito. Na década de 1930 dava radioaulas na Rádio MEC sobre geografia, que depois foram coletados por um seu irmão e publicados sob o nome “Antropogeografia – suas origens, seu objeto, seu campo de estudo e tendências”. Este livro é responsável pela terceira e última menção a Raimundo Lopes da Cunha existente na Internet. Morreu em 1941, com apenas quarenta e dois anos de idade, quando trabalhava no Museu Nacional. Anos depois a SUDEMA pediu permissão a sua viúva Graziella Costa Lopes da Cunha, residente no Rio como toda a família, para a publicação de Uma Região Tropical, que anos depois fui encontrar num canto dum sebo de São Luís. Alguma coisa que restou de uma mente brilhante, que me deu linguagem para que eu pudesse ver além das praias e folhetos.